Os trabalhadores brasileiros têm consciência de classe?

I- Introdução.

No último dia 1º de janeiro de 2023 o ex-sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva tomou posse, pela terceira vez, no cargo de Presidente da República.

Brasileiro, nordestino, oriundo da classe trabalhadora...

Não obstante tal fato, vez ou outra se afirma que os trabalhadores brasileiros não têm consciência de classe...

Será? 

O desafio é analisar essa questão neste artigo. 

Vamos lá?!

II- Consciência de classe: do indivíduo à coletividade.   

A palavra consciência nasce atrelada ao indivíduo, isoladamente, uma espécie de consciência psicológica. 

Autoconsciência, consciência de si e por aí vai... 

Por isso, é comum falar-se ou ouvir: “ah, esse trabalhador não tem consciência de classe”, referindo-se ao indivíduo ou a pequeno grupo de indivíduos.

Retrata-se, nesse exemplo, consciência de classe como se fosse uma consciência individual, atrelada à consciência política.  

Ocorre que a ideia de consciência de classe, tal como teorizada por Karl Marx, não é referenciada no indivíduo e sim quanto ao proletariado (coletividade). 

Marx em A Sagrada Família (2021, p.49) afirma que consciência classe se trata: 

(...) do que o proletariado é e do que ele será obrigado a fazer historicamente, de acordo com o seu ser, sua meta e sua ação histórica que se acham clara e irrevogavelmente predeterminadas por sua própria situação de vida e por toda a organização da sociedade burguesa atual.

Logo, há um equívoco teórico na conclusão pela in/existência de consciência de classe tendo como ponto de partida a perspectiva individual. 

De forma figurativa, é como se analisasse um filme a partir de uma fotografia, tal como se explicará mais detalhadamente a seguir. 

III- Consciência de classe: filme ou fotografia? 

Certamente você já fez uma filmagem com o seu celular... Não é mesmo?!

Reparou o que é um filme? 

E o que diferencia um filme de uma fotografia? 

Se você olhar bem, um filme é um encadeamento progressivo de fotografias. 

A fotografia é uma imagem (isolada) ao passo que o filme é o encadeamento de várias imagens, dando-lhe movimento. 

O processo histórico é um filme. E a ideia de classe é um fenômeno que decorre desse processo histórico. 

Por que essa comparação?

Para mostrar a você que o que às vezes se denomina de consciência de classe só pode ser compreendido como um filme, como um processo histórico. 

E não, de forma isolada, por uma fotografia. 

E. P. Thompson, em sua obra clássica A Formação da Classe Operária Inglesa (2022, p. 9) explica que: 

Por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência. Ressalto que é um fenômeno histórico. 

E o autor complementa (2022, p. 10): 

A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram – ou entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais. ”

Portanto, você só pode responder se os trabalhadores têm ou não consciência de classe se você analisar o processo histórico (o filme). 

Mas ainda é comum isolar um episódio, uma fotografia (não o filme), para afirmar que os trabalhadores brasileiros não têm consciência de classe. 

Por que se faz isso? 

É o que iremos responder em seguida. 


IV- Negar protagonismo: estratégia de capturar as mentes. 

Aonde estão os trabalhadores brasileiros na história?

Certamente você já ouviu que:

- A escravidão teve o seu fim por obra da Princesa Isabel (e nada se disse a sobre a resistência negra à opressão como um fator determinante). 

- Getúlio Vargas criou as leis trabalhistas (e nada se disse a respeito da pressão dos trabalhadores organizados para tal).

- Os intelectuais lutaram contra a Ditadura Militar pós 1964 (e nada se disse da ação organizada dos trabalhadores nesse período).

- O Governo que atende os pleitos dos trabalhadores é “populista” (e não se diz que os pleitos atendidos são frutos da pressão dos trabalhadores). 

Esses são apenas alguns exemplos...

O que se depreende da história geralmente contada é que as transformações sociais não resultaram da atuação coletiva dos trabalhadores, do povo. 

Assim, os direitos sociais não estariam no campo do conquistado (pela luta coletiva) e sim do “doado”, uma benesse concedida por um ou outro herói.

A classe trabalhadora é sistematicamente “ausentada” da história. 

E isso tem uma razão de ser e é importante que se compreenda. 

Júlio José Chiavenato na obra As Lutas do Povo Brasileiro (2004, p. 6) explica: 

Uma das características básicas da historiografia tradicional é negar ao povo qualquer participação profunda nas mudanças da sociedade. A partir daí se exerce um controle ideológico tendo por base o seguinte: são os “grandes” homens”, os “heróis” e os “santos” que lutam pelas massas, pois elas são incapazes de entender a grande política. 

E o autor (2004, p. 7) complementa:

O culto aos grandes homens do passado, feito muitas das vezes contra a verdade histórica, projeta-se nos anões políticos do presente, menosprezando a capacidade política do povo de cuidar de seu próprio destino. É muito simples de entender, mas bastante complexo desarmar toda essa mitificação.  

Negar a efetividade da organização e resistência da classe trabalhadora, como meio a alterar a percepção da realidade, é uma artimanha ideológica. 

Esconder o protagonismo da classe trabalhadora é uma forma de “capturar as mentes”, ocultando a importância da luta coletiva e, assim, desacreditando-a. 

É dessa forma que se oculta a importância da integração dos trabalhadores e sua organização enquanto grupo. 

O objetivo é que os trabalhadores pensem assim: “ah, para que lutar, se sindicalizar, fazer greve, se manifestar, isso tudo não adianta nada...”. 

No outro lado da moeda, tem-se a utilização de um ou outro fato (a foto) para se concluir que “os trabalhadores brasileiros não têm consciência de classe”.

Cuida-se de outra maneira de reprodução (às vezes até inconsciente) da mesma estratégia de dominação de classe. 

Oculta-se o protagonismo da organização coletiva dos trabalhadores!  

Desvirtuam-se a ideia filosófica de consciência de classe!

E, também, a importância dos trabalhadores no processo histórico brasileiro! 

E é esse último ponto que veremos a seguir. 

IV- Prazer, trabalhadores brasileiros! 

A coletivização das ações, geralmente por meio dos sindicatos, nasce como uma forma de expressão da classe trabalhadora no estado capitalista. 

No Brasil, a pauta dos trabalhadores, desde a escravidão, é a de que o Estado imponha limites à exploração do trabalho humano. 

Pauta que, com estratégias e resistências, gerou muita luta e aprendizado. Apesar de a história comumente ocultar...

Em seguida à abolição da escravidão (1888) e à proclamação da República (1889), já estavam os trabalhadores criticando o ideário liberal. 

O que culminou em vários movimentos coletivos e, no ápice, em 1917, com a chamada Grande Greve que praticamente paralisou o país. 

Foi a partir daí, com pressões sobre o Parlamento, que surgiram as primeiras legislações trabalhistas. 

Na primeira República (1889-1930) o Estado cooptou o movimento sindical, buscando controlá-lo, com a imposição do modelo de organização por categoria. 

Essa foi a tônica da chamada Era Vargas (1930-1945) apesar de, também neste momento, os trabalhadores conquistarem legislações protetivas. 

Ainda assim, ao longo da história, os trabalhadores continuaram resistindo.

Seja lutando pela centralização da luta, no movimento sindical, com o pleito de criação de uma central sindical, já na segunda República (1945-1964).

Ou pelas pautas sociais que culminaram, nesse período, na eleição, por duas vezes, do vice-presidente João Goulart, ex-ministro do Trabalho de Vargas.  

Mas a narrativa histórica, estrategicamente, como já se disse, sempre negou protagonismo à classe trabalhadora. 

Tanto que denominou o período 1945-1964 de “República Populista”, sugerindo que os trabalhadores, ao invés de protagonistas, fossem manipulados. 

As chamadas Reformas de Base, de João Goulart (1961), incorporaram diversas medidas estruturantes pleiteadas pelos trabalhadores e sindicatos. 

E impedir tais medidas reformistas, aliadas a um ambiente nacional e internacional, impulsionaram o golpe civil-militar-empresarial de 1964. 

Na ditadura militar (1964-1985) a ampliação da opressão reforçou a consciência coletiva por meio de expressões culturais. 

“Arrocho salarial”, “pelego” (sindicalistas mais dóceis ao patrão) e até, na luta por direitos na Justiça, a percepção do sentido de “colocar o patrão no pau”. 

O DIEESE, criado em 1955, foi outra expressão da consciência de classe, sendo fundamental, desde o início, na luta travada na Justiça do Trabalho, questionando-se os índices oficiais de inflação. 

A criação do PT, em 1980, e o ressurgimento da luta pelas centrais sindicais teve papel importante na disputa Parlamentar, interna e externa. 

Toda essa experiência e consciência, forjada pelo processo histórico, culmina numa classe trabalhadora cuja força é cristalizada na Constituição de 1988.

Saúde pública universal, previsão de direitos trabalhistas e previdenciários, educação pública, além de um importante rol de direitos sociais e humanos...

A eleição de Lula, ao fim de 2022, pela terceira vez, é um traço da consciência de classe, sendo indutor e também resultado desse processo.

E num momento crucial em que, além do retrocesso civilizatório, a sociedade se via diante da possibilidade de aprofundamento de um projeto autoritário.

É preciso valorizar a ação histórica dos trabalhadores e todo o aprendizado acumulado ao longo dos anos. Isso, sim, qualifica e reforça o processo.

O fato de se ter como meta a superação de um modelo de produção estrutural excludente, não significa desconsiderar as vitórias do caminho. 

Afinal, a compreensão, pelos trabalhadores, de sua missão histórica, é um processo a ser forjado no calor do tempo. 

V- Conclusão.

A consciência de classe não pode ser compreendida com base no indivíduo, psicologicamente, e sim da coletividade. 

Não é uma fotografia e sim um filme, ou seja, ela só pode ser entendida se observado o processo histórico sob perspectiva. 

E a análise desse processo deve criticar o quanto, estrategicamente, se nega protagonismo aos trabalhadores e a ocultação de suas ações na história. 

As evidências demonstram, como visto, o quanto os trabalhadores aprenderam culturalmente sobre as suas agruras e lutas. 

São essas experiências incorporadas, repetidas e institucionalizadas e que erigiram a consciência de pertencimento a uma classe, a classe trabalhadora.  

Não há dúvida, portanto, que o processo histórico brasileiro revela o quanto os trabalhadores têm, sim, consciência de classe. 

A consciência de classe se extrai de um processo coletivo e não do indivíduo, como é o caso da consciência política. 

É claro que quanto mais consciência política, mais consciência de classe, porém são conceitos distintos, inconfundíveis. 

Essa discussão, evidentemente, é complexa, pois artifícios são utilizados para ocultar a ideia de pertencimento à classe, sem que se perceba.

Um desses artifícios, e muito bem disseminado nas relações de trabalho, é nominar o trabalhador de “colaborador” da empresa.

Já ouviu falar no “colaborador”?!

Pois é. Conversa interessante, não!?

Sim! Muito! Mas par outro artigo... 

Até lá!

Atenção: A reprodução de deste artigo é permitida e não constitui ofensa aos direitos autorais, desde seja citada fonte e autoria (Art. 46, I, alínea a da Lei de Direitos Autorais).

REFERÊNCIAS:

CHIAVENATO, Júlio José. As lutas do povo brasileiro. 21ª Edição. Do “descobrimento” a Canudos. São Paulo: Moderna, 2004.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A sagrada família. 1º Edição. 7ª Reimpressão. Boi Tempo, 2021. 

THOMOSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. 1. Rio de Janeiro/São Paulo. Paz e Terra. 2021.





Similar Posts

2 Comments

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *